sábado, 16 de julho de 2011

ARTE, LOUCURA E SURTOS PSICÓTICOS !

      A capacidade do artista em mergulhar ao inconsciente faz com que se associe a manifestação artística com certa dose de loucura. Loucura é um termo que adquire sentido metafórico na linguagem popular: louco é o inspirado. Logo, todo artista e todo gênio seriam loucos, pois são pessoas inspiradas.
      Essa poetização da loucura não admite degradação, ignorando-a. Faz parte do imaginário popular ignorar a materialidade do artista: ele pode ser pobre e também louco, ter crises, depressões, euforias, castigar o corpo com drogas ou inanição. Sua materialidade física desaparece perto da materialidade da obra. Assim o público mitifica o artista e o vê como um ser à parte da humanidade.
      O fato de existirem artistas com sintomas de loucura, ou doentes mentais considerados artistas, não prova a que ambos estejam necessariamente associados; pelo contrário, tendem a se repelir. Um trabalho artístico de coerência e continuidade demanda a colaboração de um ego que esteja estruturado em sua identidade e inserção no mundo e tenha confiança em seus recursos internos, podendo dispor deles. Que alguns artistas o sejam, mesmo sob a condição de desordem mental, indica a magnífica pujança da criatividade destes, que não se esgota com a fixação e a restrição provenientes da loucura.
      Existem artistas cujo sofrimento psíquico insuportável esgota a obra, outros conseguem suportá-lo e mantêm a criatividade; ha aqueles que o superam e o transcendem, renovando-se; e também existem as crises de desequilíbrio psíquico que se alternam com um diálogo mais ou menos coerente entre o ego e inconsciente.
      Resta a questão sobre se há, no fazer artístico ou no processo criador algum componente que favoreceria o eclodir de uma psicose. E ainda uma outra, correlata: se a arte, ainda que benéfica e necessária à humanidade, sacrificaria o artista, sofredor dos males, de sua missão.
      Alem dos problemas de aceitação em termos de cultura e de mercado, existe o sofrimento interior da entrega, sem o qual não seria possível criar. Ocorre uma ativação de conteúdos inconscientes, intensa e constante. O ego e a persona (adaptação ao mundo exterior) são deixados de lado e a sombra (o reprimido) e o inconsciente mais profundo (anima/animus) geralmente predominam na primeira etapa de produção. Nesse momento o risco de ser invadio pelos complexos autônomos e pela constelação arquetípica (temas inconscientes fundamentais da psique) é bastante grande.
      Aquilo que a personalidade não resolveu, que teme enfrentar, recebe um ‘alto-falante’ interno. Ou seja, a fonte de criatividade é também fonte de tensão e de conflito, de regressão inconsciente. O artista é de certa forma um filtro para a cultura, assinalando seus movimentos e entraves e, assim, está mais exposto às tensões do inconsciente com sua constante dinamização de conteúdos.
      Para produzir, ele deve ser capaz de sair dessa imersão e de aliar o inconsciente ao consciente, à capacidade egóica de discriminação e separação; em suma, “obrar”. Jung denomina função transcendente a que une consciente e inconsciente, sendo o símbolo seu instrumento principal. O artista também encontra sua cura na capacidade simbólica, mas o percurso que tem de atravessar até chegar à ela pode oferecer riscos de desestruturação psíquica.
      Jung descreve os complexos autônomos da anima e do animus como personificações particularmente ativadas nos processos criativos. Apesar de não se subjugarem à vontade consciente, tais complexos somente se tornam patológicos quando a fixação ocorre. Eles trazem manifestações do inconsciente profundo que podem ser integradas à consciência, transformando-se em processos de natureza intuitiva e possibilitando a formação de símbolos.
      Se, de um lado, eles prenunciam o encontro e a plenitude, de outro, evocam o medo do vazio, da perda de referenciais seguros, do esquecimento e do desamparo. Sentimentos de desorientação e de infindável falta ameaçam o ego desprotegido. Por isso a criatividade exige confiança na entrega interior, na crença de que o ego não se perderá no mar do inconsciente.
      O artista é um criador que deixa transparecer em sua obra símbolos que atingem quem os observa, participantes da mesma viajem. Capta mensagens coletivas, que possuem mais força que as jorradas do inconsciente, a exemplo do que ocorre na psicose. Nesta, falta justamente a capacidade essencial da transcendência, da união de elementos opostos e de sua reorganização significante.
      Desse modo, a arte pode cumprir a função de transformadora de consciência e apaziguadora ou instigadora do inconsciente, conforme a necessidade ou desvio grupal. O poder da arte nesse sentido é reconhecido e muitas vezes usado perigosamente em propaganda institucional ou política, como nos governos comunistas e fascistas. Mas, habitualmente, a obra artística nos dá a oportunidade de ativar imagens de assombro e de encantamento. Talvez, sem ela, nossa espécie não sobrevivesse. Se não podemos alcançar a felicidade, tão efêmera e volátil, podemos apreciar, até nos momentos de sofrimento, algo de beleza produzida pelo ser humano a nos trazer uma brisa de alento.

retirado de Revista Mente & Cérebro edição especial: Jung: volume 2. Duetto editorial, 2009.

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