terça-feira, 8 de março de 2011

a psicose transcendente

O surto psicótico é um estado potencialmente transcendente como demonstrado pela visão do fenômeno pela anti-psiquiatria e pela sabedoria das culturas Xamãnicas.
Psicose é um termo genérico que abrange perturbações psíquicas como alucinações, mania de perseguição e perda de contato com a "realidade". Para a psiquiatria tradicional trata-se de uma doença de causas desconhecidas; o tratamento requer medicação e em alguns casos internações sendo as chances de recuperação promovidas por estes meios bastante limitadas. Ao longo da história foram feitas tentativas agressivas para "curar" a psicose como a lobotomia (divisão do tecido cerebral em dois ou mais pedaços), ingestão de substâncias eméticas (que provocam vômito), sangria, eletroconvulsão, doses elevadas de sedativos, etc. Atualmente os psicofármacos constituem a principal forma de tratamento, segundo o neurocirurgião Frank Vertosick as drogas psicotrópicas não promovem nenhuma melhora substancial, apenas impedem os pacientes de "nos incomodarem".
A visão da loucura enquanto uma doença é relativamente nova na história, o termo "esquizofrenia" apenas serviria para rotular os desviantes que não inerpretam os papéis definidos como "normais" em sua vida diária. Segundo David Cooper, um dos precursores da anti-psiquiatria:

"A experiencia psicótica, contando com a orientação correta, é capaz de conduzir a um estado humano mais avançado, porém, muito frequentemente, é convertida pela interferência psiquiátrica em um estado de paralisia e estultificação da pessoa"

Para a anti-psiquiatria a normalidade também é uma forma alienada de existência. É considerado normal aquilo que a maioria das pessoas fazem em um determinado contexto, o indivíduo normal apenas se adapta as coisas como são vivendo no alienado jogo de papéis imposto pela sociedade. "Não fosse pelas atitudes de rebeldia de todos aqueles que não aceitaram o que era dado, criando o que ainda não havia, estaríamos todos nas cavernas". A anti-psiquiatria não descarta a existência de debilidades psíquicas realmente patológicas oriundas de problemas orgânicos, mas se opõe categoricamente à visão tradicional da loucura pela medicina.
No episódio psicótico ocorre uma desestruturação do "eu" (ou dos "eus") do indivíduo. Ele deixa de saber quem ou o que ele é mergulhando em uma fantasmagórica região interior. Tal mergulho é, de maneira ambígua e dialética, uma forma de libertação: libertação das estruturas alienadas da "normalidade" que eram impostas ao indivíduo.
Esta imersão em níveis mais profundos da mente, que existe como uma possibilidade latente em cada um de nós, assemelha-se à uma viajem na qual o indivíduo embarca, podendo retornar dela reorganizado e reestruturado desde que o processo não sofra interferências desastrosas. A psicose, segundo os precursores da anti-psiquiatria pode ser considerada um processo natural de cura onde o indivíduo busca desesperadamente a sí mesmo abandonando os modos impostos pelo meio e penetrando em um universo interior exclusivo dele.

"Esta viajem é sentida como uma penetração interior mais profunda, como um regresso atravéz da vida pessoal, para dentro, de volta, atravéz e para além da experiência de toda a humanidade, mergulhando no homem primitivo, em adão, e talvez mais longe ainda, no ser dos animais, vejetais e minerais"

Existem pessoas acometidas por alucinações que sentem-se confortáveis em sua condição. Este estado foi denominado pelo médico, biólogo e estudioso da mente Andrew Weil como "psicose positiva". Ele também cita casos de "paranóia positiva" e "neurose positiva". Ainda segundo Weil "todo psicótico é um sábio em potencial e na extensão em que os psicóticos negativos são pesos para a sociedade, nesta mesma extensão os psicóticos positivos podem ser trunfos".
O potencial transcendente da experiência psicótica torna-se ainda mais evidente quando analizamos o mesmo fenômeno do ponto de vista de outras culturas:
As sociedades indígenas demonstram uma extraordinária concepção do surto psicótico: quando ele se manifesta em algum indivíduo (o que geralmente ocorre na adolescência) tal fenômeno - longe de ser considerado doentio - constitui uma escolha dos deuses, aquele que manifesta o surto psicótico é escolhido e treinado para ser o futuro Xamã ou curandeiro da tribo.
O jovem Xamã em formação sofre perturbações psicóticas ou epiléticas, torna-se ausente, procura a solidão além de apresentar enfermidades físicas. Este estado somente se abranda quando o indivíduo aceita tornar-se Xamã, caso contrário sua condição o leva a morte. Acatando sua vocação o iniciante começa a ser treinado pelos Xamãs mais velhos e experientes da tribo.
O tratamento da psicose proposto pela anti-psiquiatria é semelhante ao dos índios: o paciente psicótico é acompanhado durante a experiência do surto por um terapeuta no qual ele confie e que possa direcionar o processo quando preciso. Os índios também o fazem, porém o acompanhamento se dá em um contexto espiritual envolvendo as tradições, os mitos e as práticas espirituais da tribo. Tal contexto é útil para a interpretação do futuro Xamã de suas visões que passam então a fazer maior sentido e permitem a ele certa "manutenção" de suas experiências e capacidades. Assim o processo de tornar-se Xamã pode ser considerado um processo de cura àqueles cujas experiências psicóticas são desagradáveis e debilitantes, ao menos dentro do contexto em que é executado.
O uso de compostos alucinógenos também faz parte do treinamento e das práticas espirituais regulares do Xamã como o vôo extático, o diagnóstico de doenças e na cura de enfermidades físicas e psíquicas. Não se trata de um consumo irresponsável e desmedido e sim, de um uso totalmente ritualizado incapaz de provocar os problemas associados a drogas presentes em nossa decadente sociedade. A substância, juntamente com cantos, invocações, danças e adereços sugestivos proporcionam experiências extra-corpóreas onde o Xamã visita inúmeros mundos ou dimensões, negocia com os deuses, recebe fórmulas medicinais, resgata almas perdidas de pessoas enfermas, diagnostica doenças, dentre outros.
É no mínimo curioso que estas substâncias são descritas como capazes de provocar verdadeiras psicoses, mas também são usadas no processo de ascenção do Xamã bem como na própria psicoterapia.
Até quando a medicina tradicional vai continuar com sua cômoda e limitada visão do surto psicótico como uma condição patológica? à quantos processos agressivos os psicóticos ainda terão de ser submetidos para que os médicos se toquem de sua própria insanidade??

Fontes:
A política da loucura. João F. Duarte Júnior. Ed. Papirus. 1986
Drogas e estados superiores da consciência. Andrew Weil. Ed. Ground. 1990
O Xamanismo e as técnicas arcaicas do Êxtase. Mircea Eliade. Ed. Martins Fontes. 2002

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